A cera de ouvido, cientificamente conhecida como cerume, é uma substância natural que, por muito tempo, foi vista apenas como um resíduo a ser removido. 

Essa visão está completamente equivocada. Como médica otorrinolaringologista, com anos de experiência, reafirmo: a cera é uma aliada fundamental na proteção da sua saúde auditiva.

Ela é o resultado da mistura de secreções das glândulas ceruminosas e sebáceas do canal auditivo externo, combinadas com células mortas da pele e poeira. Sua presença indica um sistema de autolimpeza do ouvido funcionando perfeitamente.

Mas o que torna a cera de ouvido um tema tão relevante e que mobiliza desde a limpeza diária até a pesquisa científica de ponta? A resposta está na sua função protetora e, mais recentemente, na sua capacidade de atuar como uma “impressão digital” da nossa saúde interna. 

Vamos desvendar aqui alguns mitos e verdades, aprender a cuidar do jeito certo e explorar descobertas que prometem revolucionar o diagnóstico de doenças.

A verdadeira função da cera de ouvido

O cerume não está ali por acaso. Ele desempenha múltiplas funções essenciais para a integridade do seu canal auditivo. É um agente protetor que trabalha constantemente para manter o ouvido saudável.

6 funções vitais da cera de ouvido

  1. Barreira protetora física: a cera forma uma camada viscosa que impede a entrada de poeira, detritos, pequenos insetos e corpos estranhos no canal auditivo, barrando-os antes que atinjam o tímpano.
  2. Ação antifúngica e antibacteriana: por possuir um pH ácido (levemente abaixo de 7), a cera de ouvido cria um ambiente inóspito para o crescimento de fungos e bactérias, reduzindo significativamente o risco de infecções como as otites externas.
  3. Lubrificação e hidratação: ela impede o ressecamento da pele sensível do canal auditivo. A ausência ou a retirada excessiva de cera pode levar a rachaduras, coceira, irritação (prurido) e até mesmo dermatites.
  4. Mecanismo de autolimpeza: a cera, junto com os movimentos da mandíbula (ao mastigar ou falar), ajuda a transportar as células mortas e a sujeira para fora do ouvido, em um movimento lento e contínuo de autolimpeza.
  5. Regulação da umidade: ajuda a manter o equilíbrio de umidade dentro do canal, um fator importante para o bom funcionamento das estruturas auditivas.
  6. Indicador de saúde interna (nova fronteira científica): sua composição química varia de acordo com o estado de saúde do organismo, tornando-a, para a ciência, um potencial biomarcador para diagnóstico de diversas condições, como diabetes e, mais recentemente, câncer.

Mitos e riscos da limpeza caseira

O excesso de cera de ouvido é uma queixa comum nos consultórios de otorrinolaringologia. No entanto, o problema quase nunca está na produção, mas sim na forma errada como as pessoas tentam removê-la.

O uso de hastes flexíveis, palitos, grampos, chaves ou qualquer outro objeto pontiagudo no canal auditivo é uma prática extremamente perigosa e desaconselhada.

6 razões para evitar hastes flexíveis na limpeza interna

  1. Empurrar a cera: em vez de remover, o cotonete compacta a cera de ouvido profundamente contra o tímpano, criando o que chamamos de cerume impactado.
  2. Obstrução auditiva: a cera impactada bloqueia a passagem do som, causando sintomas como a sensação de ouvido entupido e perda auditiva por condução.
  3. Lesão do tímpano: a inserção brusca ou profunda pode perfurar a membrana timpânica, o que gera dor intensa, zumbido e pode levar a sangramento e perda de audição temporária ou permanente.
  4. Aumento da produção de cera: o contato do cotonete estimula as glândulas a produzirem ainda mais cera, perpetuando o ciclo da limpeza inadequada e da obstrução.
  5. Risco de infecção: ao remover totalmente a camada de proteção ácida e empurrar bactérias e sujeira para dentro, aumenta-se o risco de infecções graves, como otite externa.
  6. Trauma na pele do canal: o atrito das hastes pode causar microlesões na pele sensível do canal auditivo, resultando em dor, coceira e porta de entrada para microrganismos.

A maneira certa de limpar o ouvido, segundo o otorrinolaringologista

O ouvido possui seu próprio e eficiente sistema de autolimpeza. A regra de ouro, que sempre compartilho com meus pacientes, é simples: limpe apenas até onde seu dedo alcança.

6 práticas seguras para a higiene da orelha:

  1. Uso suave da toalha: após o banho, utilize a ponta de uma toalha limpa e macia para secar e limpar suavemente apenas a parte externa da orelha (a concha e a abertura do canal), sem forçar a entrada.
  2. Limpeza com o dedo mínimo: se sentir necessidade, use a ponta do dedo mínimo, envolvida na toalha, para limpar o excesso visível na entrada do canal, indo somente até onde o dedo alcança naturalmente.
  3. Hastes flexíveis apenas na orelha externa: se for usar a haste, restrinja-se à limpeza da orelha externa, dobrando-a para evitar a tentação de inseri-la no canal.
  4. Consulta regular ao otorrino: se a produção de cera é excessiva, causa entupimento, dor ou perda de audição, procure um especialista. A remoção de cerume impactado só deve ser feita por um médico (otorrinolaringologista) através de técnicas seguras.
  5. Evitar gotas caseiras: não pingue produtos não recomendados pelo médico, como óleos vegetais ou água oxigenada, por conta própria, pois eles podem desequilibrar o pH natural e causar infecções.
  6. Secagem adequada: mantenha os ouvidos secos após o banho ou piscina. A umidade excessiva favorece o crescimento de fungos e bactérias. Se necessário, use um secador de cabelo na temperatura mais fria e a uma distância segura para secar a orelha.

Cera de ouvido e o futuro do diagnóstico

O potencial da cera de ouvido vai muito além da simples proteção. Recentes e animadoras pesquisas científicas brasileiras têm lançado luz sobre a possibilidade de usá-la como um método de diagnóstico precoce e não invasivo para doenças graves.

Um estudo conduzido pela Universidade Federal de Goiás (UFG), em colaboração com o Hospital Amaral Carvalho, em Jaú (SP), especializado no tratamento oncológico, trouxe resultados promissores. A ideia é que a cera de ouvido funcione como uma biópsia de fácil coleta, refletindo a condição metabólica do corpo.

[Leia a matéria na íntegra: Estadão / G1]

O que a ciência descobriu sobre a cera

Composição química reveladora

A pesquisa demonstrou que a composição química da cera se altera quando há uma doença em curso no organismo. Se há uma alteração de saúde, essa composição se modifica, atuando como um “mapa” da saúde.

Diagnóstico antecipado

Os cientistas conseguiram detectar não apenas a presença de câncer e diabetes, mas, mais recentemente, identificaram substâncias atípicas que podem indicar estágios anteriores à formação de um tumor (neoplasia).

Amostras e resultados

O trabalho, que analisou amostras de centenas de voluntários (incluindo pessoas saudáveis, em tratamento e sem diagnóstico prévio), mostrou que, em voluntários inicialmente sem diagnóstico, o teste identificou substâncias que foram posteriormente confirmadas como indícios de câncer por exames convencionais.

Acessibilidade e rapidez

A coleta de cera de ouvido é um procedimento simples, rápido, indolor e de baixo custo, o que tornaria o método de diagnóstico muito mais acessível para a população, facilitando a identificação da doença em fases iniciais. Essas descobertas trazem grande esperança, pois a detecção precoce de qualquer doença, principalmente o câncer, aumenta drasticamente as chances de tratamento bem-sucedido e a qualidade de vida do paciente.

Uma reflexão sobre o cuidado auditivo

A cera de ouvido é um exemplo de como o nosso corpo é uma máquina engenhosa, equipada com seus próprios mecanismos de defesa. Ela nos lembra que, muitas vezes, a melhor intervenção é a não intervenção. A tentativa de limpeza excessiva ou incorreta, motivada por um mito de que o cerume é “sujeira”, é o que de fato nos expõe a riscos.

Meu convite, como otorrinolaringologista, é para que você mude sua perspectiva sobre essa substância: ela não é sujeira, é proteção. 

Cuide da parte externa da sua orelha com suavidade e deixe que o ouvido faça seu trabalho. E se a cera de ouvido realmente estiver causando desconforto, sensação de entupimento ou impactando sua audição, não hesite: procure a avaliação de um especialista. 

Somente o médico pode realizar a remoção de forma segura e confirmar se o sintoma é realmente causado por ela, ou por outra condição. O futuro da saúde, como mostram as pesquisas, pode estar literalmente nos seus ouvidos! Agende sua consulta e garanta que sua saúde auditiva esteja sempre em dia. Seus ouvidos merecem atenção profissional!